A busca por informações na internet sobre cadáveres frescos conduz a uma série de anúncios sobre cursos e treinamentos. É um reflexo do aumento dos centros de estudo no Brasil que preservam características do tecido vivo em corpos humanos. Apesar de não haver dados estatísticos, instituições que até poucos anos não existiam no país, hoje se espalham pelas capitais.
O uso do “fresh frozen cadáver”, termo mais comum entre os profissionais da área, é uma prática rotineira nos Estados Unidos que tem ganhado adeptos no Brasil. Em Balneário Camboriú, Santa Catarina, o primeiro instituto de pesquisa especializado em cadáveres frescos foi inaugurado em 2019. Três anos depois, o mesmo instituto já possui unidades em outras cinco cidades do país.
O corpo humano para ser classificado como “fresco” deve ser congelado ao invés de conservado em formaldeído. Desta forma, são preservadas as estruturas anatômicas e o profissional de saúde pode simular intervenções cirúrgicas e até mesmo procedimentos estéticos de forma muito mais próxima do real – sem as alterações causadas pela substância química, como a rigidez dos tecidos e alterações na cor e textura. Após encerrar o trabalho de pesquisa, o corpo é então incinerado e devolvido ao banco de tecidos.
A prática de estudo difere do que comumente é feito no Brasil onde são usados cadáveres que, no prazo de trinta dias, não tenham sido procurados por familiares e inexistem informações relativas a endereços de parentes, responsáveis legais ou documentos. A técnica de congelamento no lugar do formol também não é realizada.
Uma pesquisa que trata da realidade brasileira no assunto, publicada na Revista Brasileira de Educação Médica em 2019, discorre sobre a falta de cadáveres para ensino e pesquisa e, como solução, indica a necessidade do aperfeiçoamento da legislação existente e a sua difusão à sociedade brasileira.
Por tais razões, os cadáveres frescos utilizados em pesquisas são importados dos Estados Unidos. É possível encomendar corpos com base em idade, gênero e registros médicos e, antes de enviá-los, os tecidos são testados para doenças infecciosas no país de origem.
Cadáveres frescos para treinamentos no campo da estética facial
Profissionais da área médica podem se beneficiar das novas possibilidades de aperfeiçoar seus estudos, ainda que a busca pelo aspecto e consistência próximos do corpo humano vivo esteja se expandindo por outras áreas, sendo uma delas a estética. Para Patrícia Leite, cirurgiã plástica, os estudos sobre anatomia facial são destaque.
De acordo com a Dra. Patricia, a possibilidade de que sejam realizados treinamentos “hands on” em tecidos que, embora já estejam mortos, representam exatamente a anatomia viva, é de grande valia para o treinamento de profissionais da área médica. “O médico precisa ser treinado e nada melhor do que ser treinado no próprio corpo humano”, afirma a médica, ressaltando que o estudo em cadáver, conservado em formol, já existe há cerca de 30 anos, mas o treinamento da estética facial e corporal em cadáveres frescos congelados “é algo novo”, tendo surgido há cerca de cinco anos.
De acordo com a profissional, que realiza treinamento de procedimentos estéticos em cadáveres, tal prática possibilita “maior conhecimento anatômico, maior segurança nas técnicas, maior treinamento técnico e mais assertividade nos procedimentos minimamente invasivos”, ressaltando que tais descobertas realizadas a partir desses estudos “impactam diretamente nas técnicas de preenchimentos faciais, de toxina botulínica e dos preenchimentos corporais”.
“Com tecnologia, é possível conservar o tecido de modo a evitar o odor da putrefação e a conservar o turgor dos tecidos”, diz ela. “Além disso, com técnicas de coloração específicas, é possível colorir os vasos, o que facilita em muito a compreensão das estruturas e principalmente do risco vascular relacionado aos preenchedores”, conclui.
Novos estudos
A experiência com corpos humanos é uma peça importante na formação médica. Em 2019, o primeiro curso de neurocirurgia com treinamento em cadáveres frescos do Brasil ocorreu em Salvador, na Bahia. O foco do estudo foi o tumor de hipófise, uma glândula que se localiza na base do cérebro.
Um estudo publicado na revista científica PLOS ONE, em 2020, aponta que os cadáveres humanos congelados fornecem um modelo de simulação viável para intervenções endovasculares periféricas e aórticas e podem potencialmente reduzir a necessidade de experimentação animal. As distinções anatômicas e fisiopatológicas entre seres humanos e animais, além de discussões éticas sobre o uso de animais vivos em pesquisas, são questões em constante debate na área médica.
A médica, que é também membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, acredita que o aumento dos centros de estudo com o uso de cadáver fresco no Brasil é consequência da entrada de profissionais não médicos na área de procedimentos estéticos. “Houve a necessidade de maior capacitação desses profissionais e isso pode impactar os resultados e a segurança nos procedimentos estéticos”, conclui.